Querido Papa Francisco:
Nós jovens, economistas e cientistas sociais brasileiros que participamos do Encontro sobre A Economia de Francisco e Clara, de 19 a 21 de novembro, em Assis e em tantos países do mundo, através de meio virtual, pela internet, vimos aqui fazer uma sugestão com respeito aos propósitos maiores que Vossa Santidade, Papa Francisco, tem expressado: colocar em prática os instrumentos de política econômica que possam significar a realização da justiça para que então possa haver a paz dentro de cada país e dentre os países.
Queremos levar em consideração aquelas recomendações que o Papa Francisco nos recomendou em sua fala em 21 de novembro último ao assinalar que o atual sistema econômico é insustentável de diversos pontos de vista. Que precisamos mudanças que visem alcançar o bem comum. Para isto precisamos desenvolver a cultura do encontro, visando a construção de um mundo melhor para toda a humanidade. Precisamos ter um modelo de desenvolvimento que inclua as pessoas. A economia precisa estar a serviço da vida humana. Não basta o crescimento da economia se não for para todos os irmãos e irmãs. O desenvolvimento econômico deve significar o desenvolvimento integral de todas as pessoas. O que conta é o ser humano. Há que haver um modelo de solidariedade internacional. Sempre precisamos pensar em Nós, pois ninguém se salvará só. Temos a necessidade sempre um do outro. Estamos de pleno acordo com as diretrizes expressas em suas Cartas Encíclicas Laudato Si’, sobre o cuidado da casa comum, e Fratelli Tutti, sobre a fraternidade e a amizade social em que expressa: ”A tecnologia registra progressos contínuos, mas como seria bom se, ao aumento das inovações científicas e tecnológicas, correspondesse também uma equidade e uma inclusão social cada vez maior!”.
Se nós quisermos construir uma sociedade civilizada e justa, precisamos levar em consideração aqueles valores que não sejam simplesmente a busca do interesse próprio, de se levar a vantagem em tudo. Claro que todos desejamos progredir e ficamos felizes com o progresso de nossos entes queridos. Mas é importante que levemos em consideração outros valores, como o progresso das demais pessoas na sociedade. Valores tais como os que estão expressos num dos mais belos pronunciamentos da história da humanidade, “I Have a Dream”, de Martin Luther King Jr.: “Eu tenho um sonho de que um dia, nos morros vermelhos da Geórgia, os filhos de ex-escravos e os filhos de ex-donos de escravos serão capazes de sentar juntos na mesa da fraternidade.”
Que instrumentos de política econômica e social podem elevar o grau de justiça na sociedade? Quando abolimos a escravidão, elevamos o grau de justiça, mas não fizemos o suficiente para compensar os efeitos de mais de três séculos de escravidão. Se provermos ótima qualidade de ensino para todas as meninas e meninos, todos os jovens, para os adultos, inclusive para os adultos que não tiveram boas oportunidades quando eram crianças, estaremos elevando o grau de justiça. Se provermos muito boa qualidade de assistência à saúde, na cidade e no campo, em todos os bairros das cidades, estaremos elevando o grau de justiça. Se realizarmos mais depressa a reforma agrária, num país ainda com forte concentração da riqueza fundiária, estaremos elevando o grau de justiça. Se promovermos mais e mais oportunidades de economia solidária, estimulando as formas cooperativas de produção, estaremos elevando o grau de justiça. Se aumentarmos mais as oportunidades de micro-crédito, pequenas somas de recursos para que pessoas sem patrimônio possam adquirir instrumentos de trabalho e realizarem atividades produtivas que lhes permitam auferir uma remuneração suficiente para uma vida digna e pagarem o empréstimo em 12 ou 24 prestações módicas, estaremos elevando o grau de justiça. E temos também as diversas formas de transferência de renda como as do sistema previdenciário, o benefício da prestação continuada, o seguro desemprego, o salário família, o abono salarial, o bolsa família e, mais recentemente, o auxílio emergencial. E já está previsto na Lei 10.835/2004 a Renda Básica de Cidadania, Incondicional e Universal (RBC) para todos os residentes no Brasil, inclusive os estrangeiros aqui residentes há cinco anos ou mais, suficiente para atender as suas necessidades básicas. Trata-se de lei aprovada por todos os partidos em dezembro de 2002, no Senado, em dezembro de 2003, na Câmara dos Deputados, e sancionada pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 8 de janeiro de 2004. Diz a Lei, entretanto, que a RBC será instituída por etapas, a critério do Poder Executivo, começando pelos mais necessitados, portanto como o fazem o Bolsa Família e o Auxílio Emergencial, este previsto para encerrar em dezembro de 2020.
Cabe notar que o Brasil é o primeiro país do mundo cujo Congresso Nacional aprovou e o Presidente sancionou uma lei para instituir a Renda Básica de Cidadania. Para que ela venha de fato a ser colocada em prática faz-se necessário persuadir os que ocupam as principais funções de responsabilidade no Poder Executivo e no Congresso Nacional. Avaliamos que a manifestação do Papa Francisco sobre a Renda Básica de Cidadania, Incondicional e Universal poderá ser de fundamental importância para que ela venha a se efetivar no Brasil e na Terra.
Eis por que consideramos muito importante aqui colocarmos as razões pelas quais acreditamos que a Renda Básica de Cidadania corresponde inteiramente aos fundamentos e objetivos da Economia de Francisco e Clara e de suas encíclicas Laudato Si’ e Fratelli Tutti:
Quais as origens e os fundamentos da proposta ao longo da História da Humanidade?
520 anos antes de Cristo, o mestre Confúcio, no “Livro das Explicações e das Respostas”, observou que “a incerteza é ainda pior do que a pobreza. E pode alguém sair de casa senão pela porta?” Se quisermos construir uma sociedade civilizada e justa, uma solução tão de bom senso quanto sairmos de casa pela porta é instituirmos a Renda Básica de Cidadania.
300 anos antes de Cristo, em “Política”, Aristóteles diz que “a política é a ciência de como atingir o bem comum, uma vida justa para todos. Para isso se faz necessário a justiça política, que precisa ser precedida da justiça distributiva, que torna mais iguais aos desiguais.”
A palavra mais citada no Antigo Testamento da Bíblia Sagrada, 513 vezes, é Tzedaká, que em hebraico quer dizer justiça social, justiça na sociedade, que era o grande anseio do povo judeu, como também o é do povo palestino. No livro do Êxodo, de Deuteronômio, dos Provérbios, de Davi, de Esaú sempre está a palavra Tzedaká. Eis por que em seus seminários o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra muitas vezes começa pela leitura do Êxodo, para lembrar pela luta da Terra Prometida, por justiça social, pela Reforma Agrária.
No Novo Testamento, nos Atos dos Apóstolos, está que eles venderam e juntaram os seus bens, passaram a viver em comunidade, de modo a cada um poder receber de acordo com as suas necessidades. Nas parábolas de Jesus, como na do Senhor da Vinha, ele conta que o Senhor da Vinha contratou inúmeros trabalhadores ao longo da jornada, na primeira, na segunda, até a última hora do dia. Com cada um combinou o que ambos consideravam como justo. Ao final da jornada começou a fazer o pagamento pelo último que lá chegou. Ao pagar o primeiro, este lhe perguntou? “Mas como o senhor está pagando o mesmo que ao último que aqui chegou? O senhor não vê que eu trabalhei mais do que ele?” “Note que eu estou lhe pagando o que ambos combinamos como justo e que o último que aqui chegou também deve ter o direito de receber o necessário para o sustento de sua família.” E na Segunda Epístola de São Paulo aos Coríntios, ele recomenda que “todos nós deveremos sempre seguir o exemplo de Jesus que, em sendo tão poderoso, resolveu se solidarizar e viver entre os mais pobres, de tal maneira que, conforme está escrito: para que haja igualdade, para que haja justiça, toda aquela pessoa que teve uma safra abundante, não tenha demais, e toda aquela pessoa que teve uma safra pequena, não tenha de menos.”
E se formos observar os ensinamentos de Maomé e dos seguidores do Islamismo, como os quatro califas que escreveram o Livro dos Hadis, Omar, o segundo deles, diz: “Toda aquela pessoa que tem um grande patrimônio deve destinar uma parcela deste patrimônio para os que tem pouco ou nada tem”. E se olharmos os ensinamentos do Budismo, como de Dalai Lama, em “Uma Ética para o novo milênio” , ele diz: “Se for para admitir o consumo tão suntuoso dos mais ricos, nós precisamos antes assegurar a sobrevivência de toda a humanidade.”
Podemos seguir um pouco mais adiante na História e nos encontrarmos no início do Século XVI com aquele que foi canonizado Santo pela Igreja Católica, em 1935, ao tempo do Papa Pio XI, e que em 2000 foi proclamado como o Patrono dos Políticos e Governantes, por sua alta estatura moral e ética, pelo Papa João Paulo II. Em 1516, Thomas More publicou “A Utopia”, em cujo livro I há um diálogo do Cardeal Morton com alguns personagens sobre a pena de morte que, instituída na Inglaterra no início do século XVI não havia colaborado para diminuir a criminalidade violenta, os assaltos, os roubos e os assassinatos. Foi então que o viajante Rafael Hitlodeu ponderou: “Muito mais eficaz do que não haver outra alternativa para uma pessoa se tornar primeiro um ladrão, para daí ser transformado em cadáver, é você assegurar a sobrevivência das pessoas”. Com base nesta reflexão, um amigo de Thomas More, Juan Louis Vives escreveu um “Tratado de Assistência aos Pobres” para o Prefeito da cidade flamenga de Bruges onde, pela primeira vez, propõe a sobrevivência de seus habitantes. Por esta razão, Thomas More é considerado um dos pensadores da história que tão bem fundamentou o direito à garantia de renda.
Thomas Paine, um dos mais importantes ideólogos das Revoluções Americana e Francesa, muito bem fundamentou o direito à renda básica. Em “Justiça Agrária” escrita para a Assembleia Nacional da França, em 1795, ele explica que a pobreza era causada pela civilização e pela instituição da propriedade privada. Pois ali na América, onde ele havia vivido antes da independência, não enxergara tamanha pobreza e destituição quanto nas vilas e cidades europeias de então. Porque na América a propriedade era comum dentre os índios. Mas ele considerava de bom senso que uma pessoa que cultivasse a terra e fizesse benfeitorias na terra pudesse usufruir de seu trabalho na sua propriedade. Mas era seu plano, que era válido para todos os países, que toda pessoa que assim o fizesse deveria separar uma parte de seu rendimento para um fundo que a todos pertenceria. E deste fundo se pagaria a cada pessoa residente naquele país tanto um capital básico, quanto uma renda básica, como um direito inalienável de todas as pessoas participarem da riqueza comum da nação.
Depois de ter escrito “O Manifesto Comunista”, com Friedrich Engels, em 1848, mais tarde os volumes de “O Capital”, Karl Marx, em 1875, escreveu “A Crítica ao Programa de Gotha”, onde observa que numa sociedade mais amadurecida os seres humanos vão se portar de tal maneira que poderão inscrever como lema da sociedade 12 palavras em inglês que o grande economista John Kenneth Galbraith observou que tiveram um efeito ainda mais revolucionário que os volumes de “O Capital”: “From each according to his capacity. To each according to his needs”. Conta Suplicy: “Ao fazer uma palestra sobre o tema para as comunidades eclesiais de base, na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, após ter citado dezenas de pensadores ao longo da História que defendiam a garantia de uma renda para todos, o saudoso Presidente da CNBB, Dom Luciano Mendes de Almeida ponderou a mim: ‘Eduardo, você não precisa citar o Karl Marx para defender a sua proposta porque ela é muito melhor defendida por São Paulo na Segunda Epístola aos Coríntios.’ Daí eu lí aquela epístola e achei tão bela que passei sempre a citar São Paulo e Karl Marx”.
Em 1918, em “Os Caminhos da Liberdade”, Bertrand Russell depois de fazer uma reflexão sobre o fascismo, o anarquismo e o sindicalismo, os grandes movimentos que abalaram a Europa, antes da Segunda Guerra Mundial, chegou à seguinte conclusão: O meu plano é exatamente este: toda pessoa deve ter o mínimo para a sua sobrevivência. A partir daí cada um vai ter o direito de receber por sua produção, talento, criatividade, dedicação, mas a ninguém deve ser negado o mínimo para a sua sobrevivência.
Daí para a frente, no século XX e XXI um número crescente de filósofos, economistas, cientistas sociais, muitos laureados com o Prêmio Nobel de Economia e da Paz, no mais largo espectro, como George Cole, Lady Juliet Rhys Williams, Dennis and Mabel Milner, Herbert Simon, John Maynard Keynes, Oskar Lange, Abba Lerner, Joan Robinson, Friedrick Hayek, Milton Friedman, George Stigler, Robert Theobald, John Rawls, John Kenneth Galbraith, James Edward Meade, Daniel Patrick Moynihan, James Tobin, Celso Furtado, Josué de Castro, Martin Luther King Jr., Marc Ferry, Jay Hammond, Claus Offe, Philippe Van Parijs, Yannick Vanderborght, Hermione Parker, Emma Rothschild, Amartya Sen, Guy Standing, Karl Polanyi, Daniel Raventós, Walter Van Trier, Ruben lo Vuolo, Desmond Tutu, Robert Solow, Vernon Smith, Gaël Giraud, Daniel McFadden, Muhammad Yunus, Peter Diamond, Christofer Pissarides, Angus Deaton, Esther Duflo, Abhijit Banerjee passaram a defender a garantia de uma renda, seja através de um imposto de renda negativo, ou através de uma Renda Básica Universal, Incondicional, como um direito à cidadania.
A maior vantagem da Renda Básica de Cidadania, Universal e Incondicional, como demonstram com muita clareza Philippe Van Parijs e Yannick Vanderborght em “Renda Básica: uma Proposta Radical para uma Sociedade Livre e uma Economia Sã” (Cortez Editora, 2018), “Basic Income: A Radical Proposal for a Free Society and a Sane Economy” (Harvard University Press 2017) é de justamente prover dignidade e liberdade real para todas as pessoas na sociedade.
Uma questão importante é a de como financiar a Renda Básica para todos. Até para os que têm maior riqueza e renda? Sim, mas obviamente estas pessoas vão contribuir para que elas próprias e todas venham a receber. E daí acabamos com a burocracia em se precisar saber quanto cada um ganha no mercado formal ou informal e com o estigma, ou sentimento de vergonha de a pessoa precisar dizer o quanto ganha. Elimina-se também o fenômeno da dependência que resulta nas armadilhas da pobreza ou do desemprego. Quando as pessoas de maior riqueza e rendimento conhecerem bem as vantagens de viverem numa sociedade com muito maior grau de solidariedade e fraternidade, com muito menor grau de criminalidade e maior segurança, elas terão muito maior boa vontade de contribuírem com maior grau de taxação sobre seus rendimentos, fortunas e heranças.
A mais bem-sucedida experiência com o pagamento de uma renda igual a toda a população é a do Alasca, iniciada em 1982, e a qual fez o Alasca passar de o mais desigual dos 50 Estados norte-americanos, em 1980, para atualmente o mais igualitário, junto com Utah. Outras experiências têm tido sucesso em Macau, em Otjivero, na Namíbia, no Estado de Madya Pradesh, na Índia, em experiências locais na Finlândia, na Escócia, na Alemanha, na Holanda, na França, na Espanha, nas vilas rurais do Quênia, no município de Maricá, no Estado do Rio de Janeiro, no Brasil, na cidade de Stockton, na Califórnia, em Toronto, no Canadá. O interesse na Renda Básica tem crescido em todo planeta, ainda mais por causa da epidemia do coronavírus.
Os brasileiros que estamos acompanhando o Encontro sobre a Economia de Francisco e Clara consideramos que será de fundamental importância que o Papa Francisco expresse a sua avaliação sobre a Renda Básica de Cidadania e possa fazer a recomendação ao Governo brasileiro e aos de outros países do mundo para que venham a implementar a Renda Básica Universal.
Respeitosamente, o grande abraço,
Eduardo Matarazzo Suplicy
Vereador em São Paulo e autor da Lei 10.835/2004 que institui a Renda Básica de Cidadania, a ser instituída por etapas, ao tempo em que foi Senador da República (1991-2015)
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